Estou em casa, à tarde, sentado na mesa de meu escritório, olho para aquelas notas, apenas percebo a quantidade de notas baixas, nenhuma acima de 6,0. Penso se eu ensinei mal, se sou mal nisso, olho para aquela pilha de papéis, penso comigo mesmo “Por que eu trago todo esse trabalho pra casa?! Caralho, quanta merda que esses alunos escrevem nas questões!”, resolvo tirar uma pausa de toda essa monotonia.
Vou até cozinha, chegando lá não acredito no que vejo, “puta que pariu”, olho atônito para a pia, “ah não, puta que pariu, puta que pariu, puta que pariiiu, PU-TA-QUE-O-PA-RIU”, as mãos na cintura, solto o ar em bufadas, bato com a mão direita em minha própria testa, me aproximo da cena como um perito em um caso de assassinato de serial killer, massageio minhas têmporas com os indicadores, já sabendo o que vou encontrar mas ainda em descrença, confirmo meu medo: a panela com meu molho à bolonhesa a.k.a meu futuro almoço, infestada de formigas. Eu deixo a panela esfriando por um tempo e é isso que me acontece, formigas, numa panela de molho de tomate, “Você vai levar essa porra desse molho de tomate pra tua colônia, vai, arrombada? Me responde filha da puta, você não vai fazer nada com essa merda, só fudeu meu almoço, puta que pariu!”, puta que pariu.
Em fúria cega, apenas desejo levar comigo o máximo de formigas que conseguir. Jogo a panela debaixo da pia, misturo água ao molho de tomate que despejo ralo abaixo. A água bate na panela, espirra por toda a cozinha e por minha roupa, a carne moída entope a pia, que agora mantém uma sopa de tomate, formiga e suor, sinto formigamentos pelo meu braço, formigamentos literais, centenas, milhares delas pelo meu corpo, consigo perceber uma que anda ao redor dos meus olhos, sem conseguir entender como ela foi parar lá, enquanto enfio a mão na mistura cor de sangue, tentando retirar os pedaços que estão impedindo a passagem da água.
Ensopado pela água avermelhada, em estado delirante de fome, mãos sujas de carne moída que ao toque me lembram isopor, já amolecida pela água, o asco toma conta de mim, já certo de que há uma colônia de formigas se formando no meu ouvido, imbuído em um mix de cólera, depressão, arrependimento, uma série de flashbacks de derrotas me atormenta, o ano novo em que passei preso em uma escada, a vez que disse pra Carol que eu a amava e ela me respondeu com “Boa sorte”, a outra vez que, embriagado, abri meu coração pra Carol no Facebook, ela visualizou a mensagem e só me respondeu 4 meses depois, o dia em que eu matei o Nêmesis mostrão de primeira e o PS1 desligou sozinho antes de eu ver o final do jogo, o desemprego, o vazio existencial, a solidão, tudo culminando nesta sombra do que antes poderia ser, em posição fetal no chão gelado da cozinha, me pergunto qual momento da minha vida foi essencial para eu ter chegado a este ponto.
CORTA PARA:
INTERIOR DE UMA SECRETARIA EM REALENGO – FIM DE TARDE (FLASHBACK)
Um jovem Everton Loureiro de 21 anos senta-se concentrado, de olhinhos fechados, em uma espécie de oração íntima, diante de um MAÇO DE PAPÉIS. É possível ler na primeira folha “Contrato de Matrícula, Universidade Castelo Branco, 2015”.
Ele passa a folha. No topo da primeira página, lemos “Marque a opção de curso”. Acompanhamos a CANETA BIC PRETA passar por várias opções até preencher uma. Revelamos a opção: “História”.
A câmera se afasta da papelada, saindo pela janela da sala, se afastando cada vez mais, enquanto ouvimos “The Sound of Silence” de Simon & Garfunkel.
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