Estava no quarto, de madrugada, sem sono, de baixo do
cobertor mesmo com a temperatura lá fora alta para esta época do ano, meus pais
em outro quarto. Não consigo dormir, pois é a primeira noite nesta nova casa,
ainda não me acostumei a mudar de estado, deixar tudo no passado, perder amigos
só porque meu pai teve que ser transferido de batalhão devido a problemas com
um garoto negro há dois meses atrás que o acusou de racista e nazista depois
que o meu pai o pegou vendendo drogas durante as folgas do batalhão e o acusou.
A casa nova é bem grande, é daquelas em que tudo fica no
segundo andar e no primeiro andar é apenas uma enorme sala. Bem, é grande e
pelo visto bem antiga, dizem que foi usada no passado como abrigo provisório de
algumas crianças e adolescentes viciados em cola, antes dessas crianças
começarem a adotar os arredores da candelária como lar, na verdade não há muito
sobre a história dessa casa seja em bibliotecas ou na internet, sei dessa
história porque foi o vendedor que disse, vai saber se ele estava dizendo a
verdade.
Está uma noite bem quente e ainda estou coberto, apesar de
estar suando bastante, resolvo levantar para ligar o ar-condicionado, dou uma
ligada na tv e está reprisando o jogo entre Brasil e Croácia na copa do mundo,
é chato assistir novamente a um jogo quando você já sabe o resultado final,
então desligo a tv, pensar na vida antes de dormir sempre funciona... Ou não.
Só devem ter se passado uns cinco minutos desde o momento em
que liguei o ar-condicionado e já parece que estou no pólo norte, é até
estranho isso já que liguei o ar no mínimo, deveria estar com defeito então o
desliguei, se passaram mais uns trinta minutos e o frio continua, penso que
deve ser o tempo que está mudando então retorno a minha tentativa frustrada de
pegar no sono.
Alguns minutos depois começo a ouvir vários ruídos, talvez a
casa seja tão velha que esteja desmoronando aos poucos, até faz sentido, pois
pagamos um preço bem baixo se levar em conta que a casa é realmente grande, o
frio ainda não passou, será que estou com febre? Olho para o lado e percebo
vultos, me assusto, tem mais alguém no meu quarto, sim, acho que estou com
febre e delirando, porém acontece algo que não é delírio, a luz do abajur se
acende sozinha, não foi nada perto do que aconteceu a seguir, olho para o lado
e vejo três garotos no meu quarto, não sei como eles entraram, já que costumo
trancar a porta do quarto antes de dormir, e não há sinais de arrombamento,
tento dizer algo para eles, mas estou paralisado, até que um dos garotos se aproxima
e diz com uma voz bem calma.
- Não tenha medo, só estamos aqui para alertá-lo, dentro de
12 horas, você estará morto, esta casa já teve muitas vítimas em sua história,
não precisamos de mais. - Depois disso os três garotos se viram, andam um pouco
em direção a parede e somem, não como se tivessem atravessado a parede, mas
como se tivesse uma porta ali.
Fico sem reação por alguns minutos, com medo, até que
levanto e pego um termômetro dentro da gaveta que fica na mesa de cabeceira,
coloco o termômetro e olho no relógio, são 1:48 da manhã, conto uns cinco
minutos e tiro o termômetro, olho a temperatura e vejo que estou com 36,6°C, não estou com
febre, sem delírios, será que foi real?
Tento esquecer o que aconteceu e voltar a dormir, se eu não
conseguia dormir antes, imagine agora, vem a minha cabeça cenas de "O
Sexto Sentido", "Atividade Paranormal" e filmes assim, então
resolvo acender novamente a luz do meu abajur, sentar na cama do quarto e olhar
pro nada, falo "Hey, não entendi" num tom alto, evitando gritar para
não acordar os meus pais, aguardo um pouco para ver se obtenho alguma resposta,
demora alguns minutos e ouço claramente.
- Por que você não está agindo? Restam apenas 11 horas.
Mesmo com medo tento responder.
- Pois é, eu não entendi, 11 horas pra que?
De repente surge um dos garotos que apareceu anteriormente
sentado do meu lado, mas não o mesmo que falou comigo na primeira vez, seu
rosto está bem abatido, porém calmo, ele olha pra mim, sorri e diz.
- Não precisa ter medo, não vamos te fazer nenhum mal, só
estamos aqui para alertá-lo, em menos de 11 horas você estará morto aqui neste
quarto, isso não precisa acontecer novamente, não nesta casa.
- Como assim não precisa acontecer novamente? – Digo, os
outros dois garotos surgem na minha frente, começo a me acalmar, mas ainda me
sinto tenso. O terceiro garoto começa a dizer.
- Terminamos nossa história nesta casa e agora não sairemos
mais daqui, não queremos que isso aconteça com você, você é mais velho que nós,
é bom que viva mais, não precisa terminar desse jeito.
- Quem são vocês? – Pergunto, porém já imaginando o que
seriam, são mortos, espíritos, já saquei, não sei se sou médium ou algo do tipo
e estou manifestando isso agora, só sei que tem espíritos no meu quarto, e isso
era real, mas curiosamente, o primeiro garoto usou uma resposta diferente.
- Somos amigos – Ele disse, fez uma pausa e continuou
falando – Não de verdade, mas somos amigos.
- Como assim não de verdade? Tipo imaginação minha?
- Não – Ele disse – Não é a sua imaginação, digo que não
somos amigos de verdade porque você nunca irá poder sair conosco para festas,
cinema, etc. Considere-nos amigos do tipo que você faz num dia em alguma fila e
depois nunca mais o vê.
- Ok, já sei que vocês vieram me alertar e tal, isso eu já
entendi, mas o que exatamente irá acontecer aqui nesta casa daqui a menos de 11
horas? – Nisso, o primeiro garoto respondeu.
- Ela está vindo, não sabemos como ela irá se personificar,
mas sabemos que ela está vindo e chegará daqui há 11 horas.
- Eu acho que me perdi, quem está vindo? – A expressão do
garoto mudou para apreensivo quando ele respondeu.
- A morte.
Fico um pouco tenso.
- Tudo bem, vocês disseram que iriam me ajudar, podem-me
dizer como irei morrer? Seria uma puta ajuda.
- Não sabemos, apenas pressentimos a morte, não prevemos o
futuro.
- O que aconteceu com vocês?
- Éramos conhecidos antes disso tudo acontecer, sabe, amigos
de cheirar cola, estávamos aqui pois uma senhora, a antiga dona desta casa
acreditava que nos tirar da rua era um bom começo pra nos reabilitar, o que
aconteceu foi que essa senhora tinha um marido violento, que expulsou as
crianças daqui, e nós três que resistimos, acabamos com uma faca no nosso
peito, claro que o homem foi preso e acabou morto na prisão, a partir disso nós
três ficamos amigos na pós vida, e descobrimos que se nos tornássemos amigos
antes de nossa morte, talvez as coisas seriam diferentes, mais amigos nossos
morreram na Candelária, mas não conseguimos encontrá-los, estamos presos dentro
desta casa, estamos condenados a passar a eternidade aqui. Agora precisamos ir,
haja rápido.
- Ei, espera! – Eu grito, mas os três desaparecem novamente,
penso um pouco e resolvo pesquisar sobre isso, ligo o notebook e procuro na
internet algo sobre esta casa e alguma relação com a Candelária, não encontro
muita coisa, nada além de um artigo sobre antigos moradores que afirmam que
esta casa é assombrada pelo demônio, porém é um artigo sem nenhuma fonte e
postado em um blog especializado em humor negro. Não encontro nada sobre os
três garotos, mas depois de procurar muito acabo encontrando algo sobre o homem
que matou os três garotos, nada específico sobre o crime, é mais uma notícia
sobre a morte do cara na cadeia, e a única informação contida na matéria sobre
os três garotos era que eles foram enterrados como indigentes, começo a
pesquisar algo sobre “espíritos que conseguem pressentir a morte” e não
encontro nada além de teorias bobas e contos espíritas que deixaria Chico
Xavier com raiva.
Percebo que essa pesquisa tomou muito do meu tempo, já são
2:53 da madrugada, ou seja, menos de 10 horas para o acontecimento, penso que
deveria agir logo, mas agir como? Simplesmente saindo de casa na madrugada?
Iria acabar morrendo de qualquer jeito, já que a criminalidade lá fora está
complicada, tento pensar em outra solução, manter meu quarto trancado seria uma
boa, porém não deve ser 100% seguro, já que não sei como isso irá acabar, vai
que a casa desaba, não iria adiantar nada de eu ficar dentro do quarto. Penso por
muito tempo, já são 3:00 da manhã.
Começo a ficar com sono, será que dormir seria um erro?
Talvez sim, provavelmente eu não teria tempo para agir porque acordaria tarde,
e ser for um blefe dos espíritos? E se realmente forem espíritos, como ter
certeza absoluta que irei morrer daqui a pouco? Mesmo com estas questões
resolvo me manter acordado, vou para a cozinha e faço café, já são 3:20 da
manhã, é incrível como o tempo passa rápido quando você não quer que passe.
Faço uma quantidade de café o suficiente para mim, mas não adianta muita coisa,
ainda me sinto com sono, volto para o meu quarto, e numa última tentativa
desesperada, tento chamar os espíritos, não chego a gritar para evitar acordar
os meus pais, mas digo um “Ei” com um tom de voz um pouco elevado, e depois de
algum tempo, obtenho respostas.
- Você não está acreditando em nós. – Surgem novamente os
três garotos.
- Eu só preciso de alguma distração, para não pegar no sono
até o amanhecer.
- Tudo bem. – Um deles disse, os três se aproximaram de mim,
o mais próximo começou a falar com um tom amigável – Vamos conversar, já lhe
contamos sobre nós, agora nos conte sobre você.
- Bem, vim morar nessa casa porque meu pai é militar e...
- Já sabemos disso, ouvimos várias conversas desde que vocês
vieram para cá, conte algo que não sabemos. – Disse o garoto que estava mais
longe de mim.
- Ok, vamos lá então. Eu dizia que meu pai é militar e... A
propósito, eu odeio o meu pai. – Tentei ser sincero, taí algo que eles não
sabiam, porque nunca contei isso para ninguém.
- Por que você o odeia? – O garoto que estava nem tão perto
e nem tão longe pareceu interessado.
- Ele é violento, quando eu era criança ele me espancava e
me chamava de “Praga”, falava coisas do tipo “Você deveria ter sido abortado” e
batia na minha mãe também, mas minha mãe acabou indo até a delegacia da mulher
então ele acabou preso por alguns dias, depois disso ele nunca mais encostou um
dedo na minha mãe, aliás, ele se acalmou por algum tempo, mas parece que agora
recomeçou, sabe, todo esse lance com o garoto negro, isso me preocupa. – Começo
a chorar um pouco – Ele me fez largar toda a minha vida, meus amigos, pra me
mudar pra cá, agora estou sem amigos e tendo que ouvir ele reclamando o dia inteiro. Ele é o
meu pai, às vezes eu gostaria de esmagar a cabeça dele na parede... Mas ele é o
meu pai.
- Pelo menos você tem pai. – Um deles disse. – Nós não
tivemos esta oportunidade, a sua vida pode ser injusta por isso, mas lembre-se
que a vida não é justa, nunca é, mas nós lhe dizemos que a vida parece ser
muito mais saborosa do que a pós vida. Enfim, e a sua mãe? Como que ela ta
lidando com o seu pai atualmente? Pelo que observamos parece que está indo tudo
bem.
- E está... Aparentemente. Apesar de só reclamar, meu pai
não bate mais na minha mãe, apenas alguns xingamentos leves de vez em quando,
ainda bem, ver meu pai batendo na minha mãe foi algo, digamos, traumatizante,
nunca gostaria de ter visto isso, e acho que se eu visse aquela cena novamente,
sinceramente não sei o que eu faria, passa tanta coisa na minha cabeça. –
Pensei por um momento. – Sabe?! Nunca desabafei desse jeito para alguém, se é
que pode considerar isso um desabafo, a verdade é que nunca esperava que vocês
me ouvissem, acho que nem um psiquiatra daria certo, não teria coragem para
dizer isso para um estranho, mas por incrível que pareça, vocês não parecem
estranhos para mim apenas pelo fato de vocês morarem nesta casa a mais tempo do
que eu, e parece que isso me deixa seguro o suficiente para comentar sobre isso,
só... Não espalhem isso pela casa, não apareçam para o meu pai ou para a minha
mãe para falar sobre isso, ok?
- Tudo bem, não se preocupe, o seu segredo ficará muito bem
guardado conosco, nós iremos agora, talvez não voltaremos mais, então não perca
tempo, comece a agir.
Tentei emitir uma resposta mais os três desapareceram, penso
por um tempo, tentando bolar um plano, mas é difícil bolar um plano para algo
que você não tem nenhuma idéia de como irá acontecer, então só me restou
imaginar. Acabei imaginando alguém, talvez o garoto negro, invadindo a casa em
busca de vingança e me matando, normalmente são coisas assim que acontecem nos
filmes, embora seja difícil disso acontecer já que o garoto negro está em outro
estado, bem longe de nós, mas sobre invadir a casa, poderia acontecer e poderia
ser qualquer um, um assaltante comum, e como tentei reagir acabei morto, é,
pode ser isso, é uma previsão plausível, então como irei evitar isso? Sair de
casa? Acho que não iria funcionar, as coisas poderiam até piorar, do jeito que
o Rio de Janeiro está, com um assalto a cada esquina e pessoas perdendo seu
celulares aos montes, não acho que seria mais seguro ficar na rua, pensei em
outra solução e talvez eu a tenha encontrado.
Abri com cuidado a porta do quarto dos meus pais e descalço,
pois queria fazer o mínimo de barulho possível, andei até a gaveta da cama
deles (a cama deles são daquelas que tem gavetas embutidas embaixo), abri e
peguei a Magnum do meu pai, que ele sempre guardava ali em caso de emergência,
peguei algumas balas também e saí do quarto, voltei para o meu, escondi a
Magnum de baixo do meu travesseiro e deitei, mas não consegui dormir.
O sol acaba de nascer e preciso ir para a escola, eu sempre
acordei e saí para a escola antes mesmo dos meus pais acordarem, coloquei a
Magnum dentro da mochila pra não arriscar caso os meus pais resolvam xeretar o
meu quarto e também para garantir alguma segurança caso eu seja surpreendido na
rua. Estou com sono e com olheiras, nada acontece na escola além do comum que é
alunos valentões me zoando porque sou novato e também por causa do meu sotaque
leve e aulas chatas, e claro, nenhuma amizade ainda, o dia na escola me deixa
puto, mas sobrevivo a ele, já estamos no início da tarde e além de sono estou
com fome também, no caminho de casa olho para o relógio e são 13:40 da tarde,
vai acontecer a qualquer momento.
Chego em casa e vejo que meu pai está muito bravo, acho que
nunca o vi tão bravo desse jeito, talvez a mudança tenha feito mal para ele,
também vejo a minha mãe chorando de desespero, então descubro o motivo de tanta
raiva.
- Cadê a porra da minha arma, sua puta? Você sabe que
ninguém tem o direito de encostar um dedo na minha arma! Cadê ela, porra? –
Gritava o meu pai, ele estava realmente bravo.
- Eu não sei, eu não sei. – Minha mãe estava de joelhos no
chão quando eu cheguei, chorando.
- Mentirosa.
Daí meu pai começou a espancar a minha mãe e a xingar muito,
ele batia com muita força e ela chorava muito, nunca vi minha mãe apanhar
tanto, não agüentei ver aquilo, peguei a Magnum de dentro da mochila, coloquei
as balas dentro dela e a apontei pro meu pai, naquela momento não pensei em
nada, apenas em salvar a minha mãe.
- Pára! – Gritei, meu pai olhou para mim e finalmente
encontrou a sua arma.
- Mas que merda é essa? O que você ta fazendo?
- Não vou deixar você machucar a minha mãe!
- Seu filho da putinha, me devolve essa arma! – Não o ouvi,
continuei apontando a Magnum para ele.
- Não se aproxime!
Meu pai era teimoso, ele se aproximou, não pensei duas vezes
e disparei contra ele, o tiro pegou certeiro em seu peito, ele caiu no chão,
agonizando, tentou dizer algo, mas não deu para entender, quando percebi, ele
estava morto.
Percebendo o que eu acabei fazendo e vendo a minha mãe
chorar, ainda por causa do meu pai, mas agora por outro motivo, corro para o
meu quarto ainda segurando a Magnum. Algum tempo depois minha mãe ouve outro
disparo e corre para o meu quarto, mesmo muito machucada. Chegando lá ela me
encontra deitado no chão, com a minha cabeça estourada, segurando a Magnum numa
mão e um pedaço de papel na outra com algo que eu tinha acabado de escrever,
minha mãe lê o que estava escrito no pedaço de papel e não entende nada, não
fazia nenhum sentido.
“Agora eu irei ter amigos.”, Era apenas isso que estava
escrito no pedaço de papel.
Comentários
Postar um comentário