- Eu sei que o senhor está acostumado com casos de adultério. - disse o homem grisalho, de rosto magro e maneiras finas. - Mas este é um adultério diferente.
Aquela declaração não me espantou. Todos pensam que seus casos são diferentes.
- Não tem problema - eu disse. - Estamos preparados para enfrentar qualquer tipo de adultério. Fique à vontade, conte a sua história. Aceita um uísque?
- Não, obrigado.
Fez uma pausa; eu olhando para ele.
- Senhor Bellini, eu sou um homem casado. - disse finalmente.
Quase todos são, pensei, e geralmente têm uma mulher que cede aos encantos de outro homem.
- Mas o meu casamento…
Talvez fosse casado com alguém do mesmo sexo. Isso tem acontecido com mais freqüência ultimamente. Interrompi sua frase:
- Não fazemos julgamentos morais aqui. Se o seu casamento é diferente dos outros, o senhor entende…para nós não há o menor problema.
Ele demorou um pouco para entender.
- Não! Não é isso, eu não sou um homossexual, senhor Bellini. Me pareço com um? - perguntou exibindo uma ironia que me passara despercebida até então.
- As aparências, como as ideologias, já não querem dizer mais nada nos dias de hoje - afirmei.
Ele riu.
- Na verdade meu adultério não é tão diferente assim. Eu tenho uma amante, é isso.
- Diria que é o adultério mais comum do mundo.
- A diferença é que não vim até aqui para pedir que o senhor siga minha amante.
É claro que não. Geralmente quando arrumam uma amante, começam a desconfiar de suas próprias esposas. Mas deixei que chegasse até lá em seu próprio ritmo, que era bastante lento, por sinal.
- Eu queria que o senhor seguisse o marido de minha amante - disse, olhando-me fixamente, medindo minha reação.
Não deixei que flagrasse minha surpresa:
- O senhor se importa de me dizer o motivo?
- Eu acho que ele sabe de tudo.
- E o senhor está com medo de alguma represália. Deseja proteção, na verdade.
- Não, não. Eu tenho como me proteger. Tenho seguranças. Sabe como é, infelizmente, no Brasil a gente precisa proteger o que tem, e eu sou um homem de posses, um empresário bem-sucedido, graças a Deus, nesse ramo complicado das sondas submarinas...
- Sondas submarinas?
- É. Exploração no fundo do mar. Isso exige máquinas muito específicas. Eu as importo.
Difícil imaginar um importador de sondas submarinas sofrendo de problemas corriqueiros, como adultérios e dores de dente. Viver é surpreender-se a cada esquina.
- Deixando as sondas de lado - eu disse - o que exatamente o senhor quer que eu faça?
- Descubra se o marido da minha amante realmente sabe do nosso caso. Um segurança não teria a sutileza necessária para um trabalho desses. É por isso que procurei um detetive.
Agradeci em nome da classe. Se não se lembrassem da gente nem nos adultérios, fecharíamos as portas.
- De uns tempos para cá, comecei a desconfiar de que ele me segue, ou me observa. Meus seguranças não perceberam nada de anormal, mas sinto que tem alguém me espreitando. A primeira coisa que fiz foi perguntar para a Isabel, este é o nome da minha amante, Isabel, se o marido desconfiava de alguma coisa. Ela disse "não, de jeito nenhum. O Gilberto não desconfia de nada. Ele não liga para mim. Ele nem sequer olha para mim, não se preocupe". Mas eu estou preocupado. É difícil prever o que um homem traído pode fazer. Então eu ando dando umas desculpas e tenho evitado encontrar Isabel. Mas essa situação não pode continuar assim. Tenho saudades dela, sabe…
Eu sabia.
E sabia também como é complicado descobrir quando um homem enganado pela mulher tem ou não consciência do fato. Há certas evidências que preferimos esconder de nós mesmos. Mas não se pode rejeitar trabalho, não hoje em dia, com as taxas de desemprego crescendo na mesma proporção com que diminuem as cifras da minha conta bancária.
- O.K. - eu disse. - Vamos ver o que eu posso fazer.
A primeira coisa que fiz assim que Wagner Esmeralda (este era o nome completo de meu cliente) saiu do escritório foi chamar Rita pelo interfone. Quando entrou na sala, reparei que havia algo de diferente em seu rosto.
- Eu não sabia que você usava óculos - eu disse.
- Eu não usava. Hoje é o primeiro dia.
- Você fica bem de óculos - afirmei, num galanteio compulsivo e, imagino, bastante previsível para aqueles que conhecem um pouco da minha personalidade. Rita não se dignou a comentá-lo. Pedi que ligasse para Péricles, um velho detetive, ex-tira, imbatível na arte de perseguir sem ser notado.
- Péricles? É o Bellini. Estou precisando que você me faça uma campana. Adultério, o amante acha que está sendo seguido pelo marido. Eu colo no amante, você no marido.
- Eu não colo em marido porra nenhuma. Passo aí em 10 minutos.
Enquanto esperava por Péricles coloquei Muddy Waters no toca-discos. "I’m your Hoochie-Coochie man…"
No dia seguinte.
Gilberto Damato Sobrinho (este era o nome completo do marido da amante do meu cliente) advogava numa casa de dois andares na Rua Ubaldino do Amaral. Ao lado da porta, uma placa de metal, discreta, anunciava:
"Gilberto Damato Sobrinho – Advocacia"
Advocacia, simplesmente. Um pouco genérico demais para o meu gosto, se meu gosto valesse alguma coisa, eu não estaria ali, naquele calor insuportável, bisbilhotando a vida alheia para levantar alguns trocados.
Eram 10 horas da manhã. Instalei-me num bar do outro lado da rua, pedi um café e fiquei olhando o casarão.
Às 11h15, Gilberto Damato chegou, dirigindo uma Mercedes prateada. Estacionou e entrou no escritório. Era um homem já um tanto adiposo, aproximando-se dos 50. Calvo, bem vestido, usava óculos escuros e um minúsculo rabo-de-cavalo. Pode-se medir o estado de uma civilização pela maneira com que seus advogados ajeitam os cabelos. Tenho visto coisas inacreditáveis por aí.
Deixei o bar e fiquei andando pra lá e pra cá, numa das rotinas mais excitantes do meu ofício: a arte de esperar.
Nada de estranho aconteceu.
Às 4 da tarde, Gilberto saiu do escritório e entrou na Mercedes. Fui atrás. Segui-o até sua casa, no Recreio.
Ele ainda estava lá à meia-noite, quando decidi terminar o expediente e voltar para o meu apartamento.
Chegando, liguei para Péricles, atrás das novas.
- Estou com o palpite de que seu cliente é um paranoico, mas vamos dar mais um tempinho para ter certeza - disse ele.
Não dei tempo nenhum, caí na cama e dormi sem escovar os dentes.
No segundo dia.
Uma das boas coisas da profissão é que nem sempre você precisa esperar sete dias, como Deus, para dar o trabalho por encerrado.
Encontrava-me no mesmo bar do dia anterior, explicando ao balconista que eu trabalhava para uma imobiliária com interesses na região, quando Gilberto chegou, às 11h32. O que mudou em relação ao dia anterior, além do fato de ele ter se atrasado 17 minutos, foi que, ao meio-dia e meia, uma ruiva exuberante estacionou seu Alfa-Romeo ao lado da Mercedes de Gilberto. Ela não saiu do carro. Ficou ali, falando num telefone celular, balançando a cabeça de um jeito que só mulheres sádicas balançam.
Minhas análises do comportamento feminino foram interrompidas pela chegada de Gilberto. Ele saiu apressado do escritório, olhando para os lados, e entrou no Alfa-Romeo da ruiva. Corri para o meu carro, que não era nenhum Mercedes ou Alfa-Romeo, e segui atrás.
Rodei um bom tempo na cola dos dois. Quando percebi que estavam entrando num motel, liguei do meu celular para Rita.
- Pega um táxi e vem pra cá. Agora.
- Dá pra dizer o endereço?
- Motel Fênix - Dei o endereço. - Pergunte por mim na recepção. - Desliguei.
O Alfa-Romeo da ruiva parou na recepção, eu diminuí a marcha para que eles não me notassem. Esperei que entrassem e acelerei até a recepção.
- Um quarto, por favor.
A recepcionista olhou para dentro do carro, estranhando minha solidão.
- Minha namorada já está chegando. Não queremos entrar juntos…
- Tudo bem - disse. Seca. - Sua identidade por favor.
Botei uma nota de cinqüenta junto à identidade e passei para ela.
- Como é o seu nome? - perguntei.
- Sandra.
- Sandra, sabe aquele casal que acabou de entrar? Você pode me conseguir um quarto ao lado deles? Não é por nada - dei um sorrisinho amarelo - é que eu e minha namorada gostamos de saber que tem gente…ao nosso lado.
- Tudo bem - repetiu, ainda seca, dando-me a chave da suíte 22.
Estacionei o carro na garagem privativa da suíte e subi até o quarto.
Colei a orelha esquerda na parede e procurei descobrir, com dificuldade, de que lado estavam Gilberto Damato e a ruiva. O walkman e a idade estavam devastando minha audição, é verdade, mas o motel tinha paredes finas.
Na suíte 21, silêncio total.
Na 23, risadinhas.
É chato ter de admitir, mas eles se divertiam bastante. Não pude evitar uma ereção quando a ruiva sussurrou: "Vem Giba! Me fode com força porque eu vou gozar! Ahhh…"
Confesso que, ao imaginar visualmente aquela trepada que eu apenas ouvia, eliminei de minha mente a figura grotesca de Gilberto, Giba para os íntimos, e seu ridículo rabo-de-cavalo. Fiquei com a imagem da ruiva, mas foi difícil não pensar em Gilberto quando ela suplicou: "Agora deixa eu chupar o teu pau. Por favor, enfia essa Torre de Pisa inteirinha na minha boca, até eu engasgar! Ahhh…"
Inacreditável. Além de usar rabo-de-cavalo, o homem tinha o pau torto. Não se fazem mais advogados como antigamente.
Rita chegou, eles já estavam repousando. Meu pênis também. Melhor assim; teria sido constrangedor recebê-la com aquela ereção literalmente desmesurada.
Enquanto eu continuava com o ouvido grudado na parede, atento ao sono dos dois amantes, reparei que Rita olhava insistentemente para a televisão desligada.
- O.K. - eu disse. - Se deixar sem som, pode ligar.
Ela botou os óculos e entregou-se à exuberância dos vídeos pornôs com a mesma volúpia com que uma criança se entregaria ao Xou da Xuxa.
Meia hora depois, notei que Gilberto e a ruiva se preparavam para sair. Alertei Rita, já vesga de tanto acompanhar os malabarismos sexuais na TV, e saímos rapidamente do motel.
Com Rita ao volante, estacionamos a alguns metros do portão de saída. Eu preparei a teleobjetiva e ficamos esperando.
O Alfa-Romeo com Gilberto e a ruiva despontou do portão, Rita deu a partida, eu comecei a fotografar. Rita manteve nosso carro a uma distância cautelosa, sem perdê-los de vista. Fotografei-os por todo o trajeto, até o escritório de Gilberto. Chegando lá, ele desceu do carro e despediu-se da ruiva.
Eu disse para Rita: "Desce. Fica de olho no Gilberto. Eu vou atrás da ruiva".
Rita desceu, eu passei para o banco do motorista e acelerei.
A ruiva subiu a Ubaldino do Amaral até a Rua do Senado, e depois dobrou à direita na Sete de Setembro. Largou o Alfa-Romeo num estacionamento na esquina com a Rua Uruguaiana. Fiz o mesmo.
Ela ficou andando pra lá e pra cá, olhando as vitrines das lojas de roupa. Eu me sentei num bar na esquina oposta à do estacionamento, pedi um chope e fiquei observando o doce dilema de uma ruiva fatal: um vestido vermelho ou um vestido azul?
O azul, eu diria, se minha opinião fosse requisitada. O vermelho reforçaria demais o calor que ela já naturalmente transmitia.
Minha opinião não foi requisitada, a ruiva simplesmente abandonou a vitrine e seguiu caminhando até um antiquário, dois quarteirões adiante.
Paguei o chope; fui atrás.
No amplo galpão repleto de peças e móveis antigos, uma senhora de marejantes olhos verdes me recepcionou:
- Deseja alguma coisa, cavalheiro?
Antes de responder, dei uma olhada geral. A ruiva havia sumido.
- Só olhando…
- Fique à vontade.
Ah, o suave labirinto dos ricos, pensei, enquanto me embrenhava por entre móveis e objetos.
Me toquei de repente de que estava sozinho. A velha senhora de olhos verdes também desaparecera. Música clássica tocava bem baixinho, vinda do teto. O lugar todo tinha um cheiro forte de madeira sólida, antiga. Passei por mesas, cristaleiras, estantes e relógios de pêndulo. De repente, senti um cheiro diferente. O cheiro dela, ou talvez, do sexo dela. Teria os pentelhos ruivos também?
É provável que minha mente estivesse me pregando uma peça. Mas eu sentia, juro que sentia, um cheiro de sexo no ar. Talvez o fato de ter presenciado, auditivamente que fosse, a transa da ruiva com Gilberto, me predispusesse a perceber estranhas fragrâncias pelo ambiente.
Ela estava sentada atrás de uma estátua de mármore, olhando para uma caixinha de música. Suas coxas, lindas, depiladas, coxas macias de madame inatingível, estavam à mostra. Nossos olhares se cruzaram por um instante. Perdi a fala, tentei esboçar um "boa tarde", ela me ignorou, os olhos voltados novamente para a caixinha de música.
Sim, ela era terrivelmente sádica, e eu, o mais subserviente de seus vassalos.
Saí dali andando rápido, o coração descompassado, me perguntando que besteira foi aquela. Quando você segue alguém, só deve se preocupar com uma coisa: não deixar que a pessoa que você segue perceba que está sendo seguida.
Eu havia deixado que ela percebesse bem mais do que isso.
À noite, liguei para Péricles. Ele me confortou:
- O seu cliente está paranoico, Bellini. Além de mim, não tem ninguém atrás dele.
Telefonei em seguida para Rita
- O Gilberto ficou no escritório até o fim da tarde, e de lá foi para casa. Está lá até agora.
O caso parecia bastante claro. Liguei para Wagner Esmeralda, o meu cliente:
- Alguma novidade, senhor Bellini?
- Boas novidades. Acho que o senhor não tem com que e preocupar. O Gilberto Damato também está dando suas escapadinhas. Uma ruiva deslumbrante; passaram algumas horas num motel. Pelo aspecto dela, eu posso deduzir que o Gilberto não está muito preocupado com a esposa. Eu, no lugar dele, não estaria.
Wagner Esmeralda riu.
- Uma ruiva? - perguntou.
Concordei.
- Talvez o senhor tenha razão - disse - e eu esteja fantasiando as coisas, quem sabe? Olha, amanhã eu passo no seu escritório para acertarmos um pagamento. Que tal às 6 da tarde, depois do meu expediente?
- Perfeito para mim - eu disse. - Até lá, as fotos e o relatório estarão prontos.
- Eu tenho uma surpresa para você - acrescentou, enigmático, dispensando pela primeira vez o tratamento de "senhor".
Agradeci, adoro surpresas. Desejamo-nos boa-noite e desligamos.
Fui dormir, a imagem da ruiva me perseguiu. Estava excitado, tentei me masturbar, mas ela merecia mais do que um simples gozo solitário.
Ela merecia muito mais.
Desisti da punheta. Acabei pegando no sono e não tenho certeza se sonhei com ela.
No dia seguinte, às 18 horas, Rita entrou em minha sala.
- O Esmeralda chegou? - perguntei.
- Não. Mas entregaram isso para você.
Ela trazia um envelope grande, cor de abóbora, nas mãos.
Abri o envelope, havia um cheque em meu nome, assinado por Wagner Esmeralda, com uma quantia bem maior do que os honorários que havíamos combinado previamente. Maravilha. Não tenho problemas em aceitar a generosidade de um cliente.
Além do cheque, havia um outro volume dentro do envelope, um jornal publicado na tarde daquele mesmo dia.
A manchete: "Empresário mata a esposa com dois tiros no rosto e se suicida em seguida, com um tiro na têmpora."
Logo abaixo, uma foto do casal, ainda em vida. Identifiquei Wagner Esmeralda. Identifiquei também sua esposa e levei um susto. A foto era em preto e branco, mas eu não precisaria de cor nenhuma para reconhecer os cabelos avermelhados daquela beldade.
Eu já devia saber, não existem adultérios diferentes.
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