- Meus pêsames, cara. – Jimmy me abraçou, ele realmente estava triste por mim, talvez mais triste até do que eu mesmo.
- Tudo bem, valeu. – Respondi.
Estávamos do lado de fora da capela esperando a preparação para
finalmente começar o velório, depois de um tempo, um dos caras da funerária
saiu.
- Familiares primeiro, um de cada vez. Depois a capela estará
liberada para todos. – O cara da funerária disse, procurando com o olhar os
familiares.
- Vá primeiro, meu filho, eu espero aqui. Estou bem. – Minha mãe
olhou para mim e percebi que ela realmente não queria entrar lá primeiro, então
a obedeci e entrei.
E lá dentro, no caixão, no centro da capela estava ele, o meu
pai. Me aproximei do caixão e fiquei olhando para o rosto dele, nunca havia
visto esta expressão em seu rosto antes, não parecia que ele estava dormindo
como algumas pessoas costumam dizer. Por um momento pensei que ele iria se
levantar dali, mas essa idéia saiu da minha cabeça quando toquei em suas mãos
cruzadas, ele estava gelado, como se fosse uma pedra de gelo, nunca senti algo
assim ao tocar em alguém, naquele momento percebi que ali na minha frente não
estava mais o meu pai, era apenas um corpo sem vida. Não chorei naquele
momento, não consegui chorar ali, apenas saí da capela e vi a minha mãe
entrando. Não havia muitas pessoas no velório, apenas alguns familiares mesmo e
o Jimmy, na realidade o meu pai não tinha amigos.
Bem, percebi relendo as páginas anteriores do meu diário que eu
sempre mencionei o lado alcoólatra do meu pai, que, pra falar a verdade, é a
característica que eu mais me lembro dele em toda a minha vida, infelizmente.
Mas nunca cheguei a escrever aqui quem realmente ele era.
Quando jovem, meu pai chegou a estudar enfermagem, mas nunca
concluiu o curso, talvez essa tenha sido a maior frustração de sua vida, ele
realmente queria se tornar enfermeiro, mas teve que sair do curso de enfermagem
por causa da situação financeira, já que o curso era pago. Ele chegou a dizer
em algum momento da minha infância que iria voltar a fazer o curso, coisa que
nunca aconteceu.
Não demorou muito e assim que ele terminou o ginásio conseguiu
um emprego como secretário no escritório de um amigo dele, ele estava ganhando
muito bem, até conseguiu comprar um carro e um terreno para construir uma casa,
porém o seu carro não durou muito, já que era um carro de segunda mão, sempre
dava problemas, até que chegou uma hora em que não havia mais conserto, então o
meu pai acabou vendendo a carcaça do carro para se dedicar à construção da
casa.
No dia seguinte ao dia em que meu pai se livrou do carro, sem
alternativas ele acabou tendo que ir para o trabalho de trem, ele acabou
sentando ao lado de uma mulher que estava lendo um livro com alguma coisa sobre
medicina. Meu pai perguntou sobre o livro e eles acabaram conversando durante
todo o percurso do trem, até que no fim, quando ele percebeu que ainda estava
cedo para chegar ao trabalho, convidou essa mulher para tomar um café, algum
tempo depois eles começaram a namorar, se casaram e sim, esta mulher é a minha
mãe.
A partir daí eu começo a pensar em como a vida é engraçada.
Sabe, e se o carro do meu pai não tivesse quebrado? E se ele tivesse pegado
outro trem num horário mais cedo? E se ele tivesse se atrasado? Ou se ele não
tivesse se interessado pelo livro que minha mãe estava lendo naquele dia? Eles
nunca teriam se conhecido e eu não estaria aqui neste momento escrevendo isso.
São coisas desse tipo que me fazem acreditar no destino, era para acontecer,
tudo aquilo provavelmente estava pré-determinado por alguma força no universo
para fazê-los se conhecerem.
A minha mãe se interessava por medicina na época, mas ainda não
estudava por falta de grana, no fim das contas ela nunca estudou medicina de
fato. Quando eles se casaram, minha mãe já estava grávida de mim, sabendo
disso, meu pai agilizou a construção de nossa casa, mamãe o ajudou, ela largou
o ginásio para começar a trabalhar como costureira, ela é mais jovem que o meu
pai e na época que eles se conheceram ela ainda estava na escola. Enfim, após
alguns anos e até mesmo depois de eu ter nascido, a casa estava cem por cento
concluída.
Nessa época o meu pai era muito carinhoso e gente boa,
principalmente com a minha mãe e comigo, não lembro direito dessa época porque
eu era muito novo, mas as coisas começaram a mudar quando eu tinha uns quatro anos.
Tudo começou quando o chefe do meu pai resolveu vender a firma.
Sob nova direção, houve um corte inacreditável de funcionários e o meu pai
estava incluído nesta lista. Após isso ele tentou arrumar todo tipo de emprego,
mas ele não conseguia ou não durava nem um mês. Era final dos anos 70, a taxa de desemprego no
Brasil nessa época estava muito alta, os militares não estavam ajudando o povo,
foi uma época difícil de se viver neste país.
A minha mãe, que na época tinha voltado a estudar, viu num dia
que estávamos quase sem comida e sem dinheiro para comprar mais, vendo esta
situação, ela resolveu largar os estudos novamente e começou a trabalhar como
faxineira na casa de um executivo que a pagava muito bem. Meu pai se sentiu mal
por ter visto a minha mãe largando tudo novamente para sustentar a família, ele
ficou realmente muito deprimido, e isso o fez ir para o álcool.
Como meu pai não tinha dinheiro, ele começou a pegar escondido o
dinheiro da carteira da minha mãe, um dia ela o flagrou fazendo isso e ficou
com raiva, ele saiu de casa a tarde e só voltou à noite, chegou bêbado, acho
que foi a primeira vez que vi meu pai bêbado. Minha mãe, vendo essa situação,
chamou a atenção dele, ele ficou com raiva e bateu nela, isso aconteceu
na minha frente, ele virou pra mim com um olhar de “ta olhando o que?” e me
bateu também, eu chorei, minha mãe estava chorando também, desde então, essa
situação passou a ser quase uma rotina em casa.
Minha mãe realmente o temia, pois um dia ele a ameaçou de morte.
Depois do dia em que ele quebrou o meu toca discos e que eu saí de casa, ele
enlouqueceu, começou a ameaçar qualquer desconhecido na rua e querer arrumar
confusão, para o seu azar, ele acabou espancando quase até a morte um
adolescente que depois foi descoberto que era o filho de um policial. Ele foi
condenado a cinco anos de prisão por tentativa de homicídio, e no ano passado
ele saiu da cadeia, minha mãe estava com medo por causa da ameaça de meu pai,
mas o que aconteceu foi bizarro. Quando ele chegou em casa ele abraçou e chorou
no ombro dela, parece que os cinco anos de prisão foram traumatizantes
para ele, desde aquele dia ele ficou muito calmo, não bebia mais. Há mais ou
menos três meses atrás fomos num jantar em família, ele brincou conosco,
conversou, foi um ótimo dia, então ele falou uma frase que eu nunca mais irei
esquecer em minha vida:
- Eu estou feliz!
Ele foi sincero, deu para perceber em seus olhos, aí eu pensei
que um dia eu também irei encontrar essa felicidade, um dia eu conseguirei
dizer estas palavras com esse nível de sinceridade, um dia...
Após esse dia, mais ou menos uma semana depois, meu pai acordou
de madrugada se sentindo muito mal, o levamos até o médico, ele acabou
diagnosticado com cirrose e úlcera, os médicos disseram que o estado dele era
delicado e que ele precisaria ficar internado, ele ficou no hospital até
anteontem, quando recebemos a notícia de sua morte.
Depois do enterro fui para casa junto com minha mãe, fui para o
quarto, fumei alguns cigarros e aqui estou eu, comecei a chorar bastante
enquanto escrevo aqui, parece que finalmente a ficha caiu.
Apesar de tudo, meu pai nos amava, e ele provou isso nos últimos
dias de sua vida, ele não queria nos machucar, nunca quis, foi apenas uma consequência
dos momentos difíceis que ele teve na vida. Irei sentir muita falta dele.
Henrique Soares, 22 de Junho de 1996.
Caraca aii que texto lindo 😟😟
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